O quadro se repete quase todos os meses desde, pelo menos, 2022. Grandes e médias medias indústrias de consumo e varejistas, normalmente mais resilientes, entram com seus pedidos de recuperação judicial nos tribunais, em anúncios que chegam a bilhões em dívidas, numa crise no varejo que se arrasta e vai engolindo lojas e empregos.
Muito provavelmente, o volume de reestruturações de dívida e recuperações judiciais superam a fase da mega quebradeira do varejo do final dos anos 90, quando o fim da ciranda financeira da inflação e a disparada do calote pesou em grandes redes, como Lojas Brasileiras, G.Aronson e Arapuã, redes esquecidas no imaginário do consumidor com mais de 40 anos.
Mas por que esse ciclo de crise no setor — de empresas jogando a toalha e acionando a Justiça — não perde força?
Na madrugada dessa quinta-feira (21), como o Valor informou pela manhã, a rede Dia entrou com pedido de recuperação na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, por conta de uma dívida de R$ 1,1 bilhão.
Há um consenso no mercado do efeito da alta dos juros no total dos passivos, que fizeram dívidas dispararem entre 2021 e 2022, sem uma geração de caixa que pudesse honrar os pagamentos. A venda perdeu vigor com as famílias devendo somas recordes na praça, e o corte de despesas dentro das companhias não conseguiu aliviar a derrubada da receita.
Não que isso tenha deixado de existir, e é o pano de fundo central desse movimento.
Ocorre que as vendas melhoraram em boa parte do varejo, apesar de ainda ocorrerem instabilidades e de ser uma alta lenta, o crédito vai retornando e os juros começaram a cair no mercado em 2023.
Desconfiança e Americanas
Também há um ambiente de confiança maior entre os consumidores, com retomada do emprego após 2022. O problema é que a acomodação de uma crise da magnitude enfrentada após a pandemia leva tempo, exige apoio de credores mais irascíveis hoje — principalmente depois da fraude na Americanas, que levantou suspeitas sobre todo o segmento.
Pesa nessa hora a falta de confiança do mercado no setor, mesmo em empresas líderes de segmento, com escala maior e marcas fortes. Ambientes em que falta credibilidade, com clima de desconfiança, o risco de empresas já com problemas financeiros aumenta e os fornecedores e banqueiros não querem morrer com um mico maior nas mãos.
Se a Americanas foi uma pancada em todo o setor, com instituições financeiras fechando a porta para as varejistas, não dá para dizer que isso voltou à normalidade.
A recuperação judicial do Dia, que tem como credor o banco Daycoval, um importante financiador das redes brasileiras, é outro balde de água fria. Nas palavras de um CEO, há um ano no cargo, e que tenta resgatar uma grande varejista do fundo do poço, a tolerância dos credores aos tropeços das empresas do setor anda muito baixa.
“Você pede dinheiro, os bancos dizem que só dão aval para a linha se a gente conseguir provar que vai ser rentável. Se o plano de reestruturação o convencer. E isso é algo que depende de tempo, e tempo é uma coisa que a empresa não tem”, diz o CEO.
“Enquanto ele não se convence de que há um caminho razoável, não tem conversa.”
O recuo dos juros é gradual e, apesar de contabilmente aliviar a despesa financeira registrada em balanço, ainda há pagamentos em aberto de dívidas antigas, quando o juro estava em dois dígitos .
“Tudo vira um efeito dominó, um looping sem fim, e o único jeito é recorrer à Justiça. Por isso, até hoje abrimos os jornais e lemos uma ‘RJ’ [sigla de recuperação judicial] toda a semana”, diz um consultor de empresas em recuperação.
Segundo dados da Serasa, em 2023, foram quase 400 pedidos de recuperação judicial no comércio, alta de 88% sobre 2022.
Crises em “looping” e má gestão
Para completar esse quadro, o consumo no país viveu duas crise gigantescas em cinco anos. É algo inédito na história recente.
Como não se bastasse um baque do tamanho da covid-19, o varejo foi o setor que mais penou na recessão do governo de Dilma Rousseff, entre 2015 e 2016. O ano de 2017 teve o terceiro pior desempenho do PIB em 127 anos.
Quando as empresas começaram a respirar aliviadas, em 2019, veio a pancada no ano seguinte.
Não dá para tirar do radar também os erros de má gestão e decisões estratégicas equivocadas, que demoraram a ser identificadas. Ou mesmo, que falte ação mais enérgica — seja do CEO local ou dos donos estrangeiros, que nem sempre dão autonomia à equipe no Brasil. E aí, essa conta é deles, principalmente.
Em conversas privadas, dez entre cada dez presidentes de redes do primeiro escalão, com quem o Valor tem conversado na cobertura do tema, admitem que erros de gestão têm peso relevante em muitas recuperações judiciais.
Lojas abandonadas muito tempo, sujas, escuras são um convite ao não retorno. Quando isso se mantém no momento em que a venda cai, o cenário só se complica mais.
Empresas com postura de “low cost” da porta para fora, mas com vida de empresa rica, do portão para dentro, põe sua perenidade em risco.
Para alguns, dá para entrar nesse cálculo decisões estratégicas erradas para buscar um crescimento irracional, levando a um nível de concorrência predatória absurda, que mina a resistência das empresas, lembra um consultor.
Jogando todos os aspectos na mesma cesta, anda difícil prever total normalidade, apesar do esforço de muitas redes bem administradas, e de seus executivos, de caminhar nessa direção.
Fonte: Valor Econômico